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A dolorosa busca pela verdade*

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Marcelo Gleiser**

Verdade, mesmo nas ciências exatas, é um conceito que exige muito cuidado. Em princípio, não há uma verdade final, uma teoria “perfeita” do mundo. O que existe são aproximações, algumas mais precisas do que outras, modelos matemáticos que descrevem os fenômenos que observamos na natureza.

Em raras ocasiões, teorias podem até prever a existência de novos fenômenos ou objetos ainda não observados ou descobertos, como se nossa imaginação se antecipasse aos nossos “olhos”, criando realidades que depois comprovamos existir.

O ceticismo que marca o trabalho do cientista é ao mesmo tempo fundamental e brutal para preservar a credibilidade da ciência. No seu trabalho, o cientista tem poucas certezas. Uma delas é a do ceticismo com que uma ideia nova será acatada. Isso se ela não for completamente desprezada, claro.

A grande vantagem desse sistema é que se uma ideia for mesmo correta, ela será aceita pela comunidade científica. Anos, ou mesmo décadas, podem se passar antes que isso aconteça, o que muitas vezes pode trazer grande sofrimento e desespero ao seu proponente. Se por um lado temos de acreditar em nossas ideias e saber como defendê-las das críticas de colegas, por outro devemos também saber aceitar quando estamos errados, evitando frustrações ainda mais prolongadas. Essa lição oferecida pela ciência pode ser muito útil também fora dela.

Um dos episódios mais dramáticos na história da física ocorreu com o austríaco Ludwig Boltzmann, um dos arquitetos da mecânica estática. Trabalhando no final do século XIX, Boltzmann defendia a existência de átomos contra críticos como o filósofo Ernst Mach e o químico Friedrich Ostwald, que diziam que átomos não eram reais: eles não acreditavam que a física pudesse descrever o comportamento de objetos que não eram observáveis. O debate atingiu seu clímax durante uma conferência em Lubeck em 1895, conforme relatou Arnold Sommerfeld: “… era uma luta entre um touro (Boltzmann) e seu matador (Ostwald). Mas desta vez o touro conquistou o matador, apesar de toda sua elegância e técnica. Os argumentos de Boltzmann foram bem mais aceitos, com todos os jovens cientistas tomando seu lado”.

Mas Boltzmann continuou isolado em sua batalha, o que lhe custou um altíssimo preço emocional. Deprimido e doente, em 1906, um ano antes da comprovação experimental da existência dos átomos, ele se suicidou.

Durante os primeiros dias do rádio, muitos achavam que a freqüência modulada (FM), proposta por Edwin H. Armstrong, da Universidade de Columbia nos EUA, seria a solução contra a alternativa, a amplitude modulada (AM), que era muito suscetível à estática causada por distúrbios atmosféricos. Mas em 1922, o matemático John H. Carlson, do Bell Laboratories, publicou um artigo demonstrando que a banda requerida pela FM era maior do que pela AM, e que a distorção do sinal era maior. A maioria dos investigadores abandonaram seus projetos da transmissão em FM.

Isolado, Armstrong continuou a insistir nas vantagens da FM, e, em 1930, provou suas vantagens na luta contra a estática. As estações de rádio, que haviam investido pesadamente nas transmissões em AM, se recusaram a aceitar sua descoberta. Quando finalmente elas aceitaram, o fizeram sem pagar direitos a Armstrong, que gastou anos em lutas judiciais que lhe custaram todo seu dinheiro. Em 1954, exausto e empobrecido, Armstrong tirou sua própria vida.

Raramente as grandes descobertas ou invenções são rapidamente reconhecidas. O cientista, como qualquer outro profissional, comete às vezes erros de julgamento devido a preconceitos ou à aceitação cega de “verdades” ditadas por grandes nomes. Não há um sistema perfeito, pois não somos perfeitos. O que vale é nos enamoramos de uma ideia, mas nunca cegamente.

*Este texto foi originalmente publicado no jornal Folha de São Paulo, na seção micro/macro, em 15 de agosto de 1999.

**Marcelo Gleiser é professor e pesquisador de Física e Astronomia da Universidade Dartmouth College, em Hanover, nos EUA, desde 1991. É articulista do jornal Folha de São Paulo desde 1997 e autor de livros como A Dança do Universo (1997) e O Fim da Terra e do Céu (2002).

“Violência Enquadrada”: Lei Maria da Penha?

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                                                                                                            Ubiracy de Souza Braga*

Talvez a expressão utilizada por Slavoj Žižek: “violência enquadrada”, seja precisamente porque, “talvez, hoje, Jô seja o herói apropriado: aquele que se recusa a buscar um significado mais profundo” (2008: 452). Em verdade ele quer retratar a “visão em paralaxe”: medida da mudança de posição aparente de um objeto em relação a um segundo plano mais distante, quando esse objeto é visto a partir de ângulos diferentes. Esse fenômeno óptico, relativamente simples, torna-se método e guia para seu livro, The Paralaxe View (2008), uma das mais ousadas aventuras filosófico-psicanalíticas de nosso tempo. E não devemos esquecer que a metáfora do fenômeno óptico surge também como instrumento crítico contra “as falsas formas do universal”, como é o caso do conservadorismo, no campo da política, com a exclusão do espaço político propriamente dito e a redução do potencial subversivo da noção de liberdade, seja individual, seja no plano coletivo das massas rurais e urbanas.
Note bem: o conservadorismo é um fenômeno universal para toda a espécie humana, mas é também um novo produto das condições históricas e sociais desta época, no que podemos dizer que há dois tipos de conservadorismo. Há o tipo que é mais ou menos universal, e outro definitivamente moderno que é produto de circunstâncias históricas e sociais particulares e que tem suas tradições, forma e estrutura próprias e particulares. Poderíamos chamar o primeiro tipo de “conservadorismo natural” e o segundo de “conservadorismo moderno”, se a palavra “natural” não estivesse já carregada de diversos significados e matizes desde o debate eurocêntrico a respeito no âmbito da filosofia como de resto nas ciências sociais em geral.
O conservadorismo, em certo sentido, surgiu do tradicionalismo: de fato, ele é primordialmente nada mais do que o “tradicionalismo tornado consciente”. Apesar disso, os dois não são sinônimos, na medida em que o tradicionalismo só assume seus traços especificamente conservadores, enquanto expressão de um modo de vida e pensamento, como um movimento relativamente autônomo no processo social. Uma das características mais essenciais desse modo de vida e desse pensamento conservador parece ser a forma como ele se apega ao imediato, o real, o concreto. O conservador somente pensa em termos dos “sistemas como reação”, quando é forçado a desenvolver um sistema próprio para contrapor ao dos progressistas ou quando a marcha dos acontecimentos, o priva de qualquer influência sobre o presente imediato, de tal forma que ele seria obrigado a “girar a roda da história para trás” a fim de reconquistar a sua influência ao nível ideológico ou político propriamente dito do poder.
Sua natureza peculiar pode ser mais claramente percebida no seu conceito de propriedade de forma anteriormente diversa da propriedade de hoje. Aquele sentido genuíno trazia consigo certos privilégios para seu dono – por exemplo; “dava-lhe vez nas questões de Estado, o direito de caçar, de se tornar membro de júri. Dessa forma (a propriedade) estava estreitamente ligada à honra pessoal e, portanto, era em certo sentido inalienável”. Assim, existia uma relação completamente intransferível e recíproca entre uma propriedade em particular e um dono em particular. O conceito abstrato de propriedade da burguesia suprimiu a antiga concretização do conhecimento. Portanto, a abstração das relações humanas sob o capitalismo, que é constantemente enfatizada por Marx, e é claro depois dele, foi originalmente uma descoberta dos observadores do campo conservador por que são conservadores.
O fundamental é que essa insistência sobre o “concreto”, ou antiga concretização do conhecimento, é um sintoma do fato de que o conservadorismo conhece os processos históricos em termos de relações e situações que existem apenas como restos do passado, e do fato de que os impulsos em direção à ação, que brotam dessa maneira de se conhecer a história, são também centradas sobre relações passadas que ainda sobrevivem no presente. O pensamento conservador autêntico tem sua relevância e dignidade baseada em algo mais do que mera especulação baseada no fato de que as atitudes vistas desse tipo ainda sobrevivem em vários setores da sociedade.
Mas também temos a outra face da moeda com os chamados “crimes do dia-a-dia”, neste caso na cidade de Fortaleza, onde o social pode ser visto pela própria culatra. A notícia “Ladrão assalta e acaba morto” encobre a equação: justiçamento privado=assalto + morte. Vejamos como o discurso jornalístico reitera este “complexo integrado de fatos sociais”: “A onda de insegurança que vem dominando o Estado do Ceará e, em maior escala, a Capital e sua região metropolitana, começa a provocar a reação da população, que, perigosamente, tenta fazer justiça com as próprias mãos diante das autoridades. Foi o que aconteceu, ontem, em dois episódios na cidade” (cf. Diário do Nordeste. Fortaleza, 2. 4. 2010, grifos meus).
E mais uma vez a imprensa reitera tais fatos em poucos dias: “Mais um caso serve para deixar em alerta as autoridades policiais. Um cidadão teve sua bicicleta roubada, reagiu e matou bandido”. NB: na primeira página do Diário do Nordeste (6.04.2010): “Em menos de uma semana, Fortaleza viveu uma nova morte causada pelo temor causado pela insegurança. Na madrugada de ontem, no bairro Luciano Cavalcante, o ajudante de pedreiro José Cleilson de Sousa Martins, 21, não suportou ter sua bicicleta roubada, após ser violentamente atacado ao lado da namorada. Ele arriscou a vida de ambos ao tentar dominar um dos bandidos. O desfecho foi que acabou matando o criminoso com uma pedra” (Diário do Nordeste. Fortaleza, 6. 04. 2010).
Enfim, para Mannheim, somente quando a natureza peculiar da objetividade de uma configuração estrutural dinâmica for apreendida pode-se distinguir um comportamento autoritário/conservador de um tradicionalista. É o caso ainda específicamente falando de averiguar do ponto de vista da pesquisa científica, “o crescente número de assassinatos de mulheres e a omissão do poder público no estado do Ceará, onde os criminosos se utilizaram de outros meios violentos, tais como espancamento, pauladas, pedradas, sufocamento e maus-tratos. Houve, inclusive, o caso de uma jovem que foi decapitada (…). A maioria absoluta dos crimes de assassinato de mulheres tem motivo passional” (cf. Diário do Nordeste, 12 de março; 30 de abril; 27 de maio; 28 de maio de 2006; 7 de janeiro de 2007; 28 de julho de 2008 etc.).
A biofarmacêutica Maria da Penha Maia lutou durante 20 anos para ver seu agressor condenado na cidade de Fortaleza, Ce. Desde a criação da Lei Maria da Penha, segundo dados da Delegacia da Mulher, foram feitos 19.528 atendimentos; 1.576 inquéritos foram enviados à Justiça; 800 agressores foram presos; e 4.600 medidas protetivas foram expedidas. Houve ainda a redução das mortes. Ela virou símbolo contra a violência doméstica como representante da lei que leva seu nome: Maria da Penha!
Um balanço divulgado pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) sobre a aplicabilidade da Lei Maria da Penha mostra que existem, atualmente, 150.532 processos tramitando nas varas especializadas de violência doméstica e familiar contra a mulher, cuja criação está prevista na Lei. Segundo o que foi divulgado pela mídia, dois anos e sete meses depois de sancionada a legislação, o Relatório aponta que foram decretadas 11.175 prisões em flagrante e 915 preventivas. Dos 75.826 processos que já tiveram sentença, 1.808 levaram o réu para trás das grades – 2% do total. Em relação às medidas protetivas, como retirar o agressor de casa ou impedi-lo de aproximar-se da vítima, foram 88.972 pedidos desde a criação da lei, mas apenas 19,4 mil (ou 22%) deferidos, segundo o balanço (Cf. Soares, CLAM, 15.04.2009).
No caso brasileiro, a presença do pensamento autoritário tendo como prócer Oliveira Vianna (cf. Vianna, 1933: 373 e ss; Vianna, 1930; 89 e ss) na vida intelectual deste século foi freqüentemente subestimada, especialmente entre os que passaram a viver os problemas políticos e sociais de forma plenamente consciente a partir da década de 1960, época que culminaria em sucessivos golpes político-militares de Estado, não só no Brasil, mas de resto em boa parte da América Latina (cf. Comblin, 1976; 1980). Isto porque para Vianna, “o sentimento da unidade social, o patriotismo local, não se havia podido ali formar, não só porque os elementos originários, com que se constituiu aquela população, eram, em regra, tipos de homens de aventura, com o temperamento e a psicologia específica de homens de aventura; como mesmo porque estávamos diante de uma sociedade dispersíssima, cuja densidade demográfica era por aquela época muito inferior a 0,2 habitantes por km² – a densidade média do centro amazônico, segundo os melhores cálculos estatísticos” (Vianna, 1930:93).
Esta presença se faz notar, por um lado, quando vemos o interesse na publicação de suas “obras completas” num país naquele período avesso “à leitura”, onde “o desprezo pela leitura assume dimensões de doença crônica” (cf. Rizzo, 1998), e por outro, quando essa “redescoberta” vem sendo difundida pelos integralistas, ou, por obscuros profissionais liberais transformados em administradores no interior de um vasto país. Mais do que isso: é possível seguir o rastro da sua presença em alguns produtos intelectuais do extinto Instituto Superior de Estudos Brasileiros (ISEB). Menos contraditória, mas sem dúvida inesperada, é a sua influência sobre o curso de história da educação da antiga Faculdade Nacional de Filosofia, posteriormente Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro leiam-se a introdução às Instituições Políticas Brasileiras, de Oliveira Vianna e saber-se-á imediatamente de onde foi tirada grande parte do conteúdo do curso introdutório à História da Educação e como “mitos reacionários” podem chegar a atuar sobre “ingênuas adolescentes recém-saídas da escola normal”, como também no então Departamento de Sociologia e Política da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, PUC-RJ.
Na Apresentação – Uma Vida sem Violência, Maria da Penha afirma o seguinte: “a Lei Federal nº. 11.340, representa um marco na história de luta dos movimentos de mulheres. Ela veio para corrigir a desigualdade de poder que existe entre homens e mulheres em nossa sociedade e que se expressa de forma oculta, protegida pelas paredes ´do lar` e naturalizada pela cultura machista (…). Em 2001 o Brasil foi condenado pela CIDH – Comissão Interamericana de Direitos Humanos ´ante a impunidade e o padrão de ineficácia da ação judicial e tolerância estatal frente aos casos de violência doméstica contra as mulheres no Brasil`(…) ´a violação contra Maria da Penha faz parte de um padrão geral de negligência e falta de efetividade do Estado para processar e condenar aos agressores, e prevenir essas práticas degradantes(cf. Lei Maria da Penha, p. 7).
Para Marilena Chauí no texto Apontamentos para uma Crítica da Ação Integralista Brasileira (1978: 32 e ss), um intérprete que freqüente os textos dos historiadores e cientistas sociais, o autoritarismo brasileiro torna-se compreensível na medida em que são esclarecidas tanto a gênese histórica de sua eficácia quanto a natureza de suas manifestações conjunturais mais flagrantes como vemos nos exemplos acima no que se refere às vítimas da violência doméstica. No entanto, em outro registro, o enigma do autoritarismo brasileiro permanece, isto é, fica a pergunta: como se entrelaçam debilidade teórica e eficácia prática?  O que pode suscitar no intérprete um impulso à desqualificação imediata do discurso autoritário, como ocorre, por exemplo, a Sergio Buarque de Hollanda, em Raízes do Brasil, ao considerar o Integralismo um produto das elocubrações de “intelectuais neurastênicos”, ávidos de “obter a chancela, o nihil obstat da autoridade civil”. Ou, em Dante Moreira Leite quando começa a escrever acerca de Oliveira Vianna. Apesar das críticas – e felizmente já havia no Brasil, quem percebesse os absurdos de suas afirmações, a ausência de documentos – esses livros tiveram várias edições e foram citados a sério, ou, como afirma Chauí, “como se representassem algo mais do que a imaginação doentia de um homem que deve ter sido profundamente infeliz”.
Desnecessário dizer que, sobre Oliveira Vianna, são amplamente conhecidos os ensaios críticos de Astrojildo Pereira (1929), Nelson Werneck Sodré (1961), Breschiani (1973), Vanilda Paiva (1978), Cerqueira Filho (1982), Iglésias (2000) antevistos por Antonio Gramsci (1974, 1975, 1990) como aparece em Problèmes de Culture. Le racisme, Gobineau et les origines de la philosophie de la práxis, onde afirma o seguinte: Il faut lire la Vita di Gobineau écrire par Lorenzo Gigli, pour voir si Gli a réussi à reconstituir exactement l`histoire des idées racistes e à les insérer dans la cadre historique de la culture moderne. Il faut pour cela reprendre les choses à partir des tendances historiographiques de la France de la Restauratión e de Louis-Philippe (Thierry, Mignet, Guizot) et de la problématique qui voir l`histoire française comme une lute séculaire entre l`aristicratie germanique (franque) et le peuple d`origine gauloise ou gallo-romaine(Gramsci, 1990: 290).
Para o que nos interessa os autores se concentraram sobre o caráter racista e de apologia das frações das classes dominantes que permeia a obra Raça e Assimilação (1934), Instituições Políticas Brasileiras (1949, 2 vols.), mormente Populações Meridionais do Brasil (1952) e sobre o período da legislação trabalhista contida na Carta de 1937 de inspiração fascista. As influências menores sofridas por Oliveira Vianna, são numerosas, como indica-nos Chauí (1978), mas no caso de Paiva (1978) pretende-se apenas acompanhar a influência dos teóricos da geração seguinte: Vacher de Lapouge (1854-1936) e Gustave le Bon (1841-1931).
Para Chauí, “o pensar autoritário tem a peculiaridade de precisar recorrer a certezas decretadas antes do pensamento e fora dele para que possa entrar em atividade. Seria ilusório supor que o pensamento autoritário desemboque numa exigência de obediência, pois esta é seu próprio ponto de partida: precisa de certezas prévias para poder efetuar-se e vai buscá-las tanto em fatos quanto em ´teorias`. Mais do que isto: é a própria maneira de manipular os fatos ou de assegurar-se com uma teoria que assinala a necessidade de submeter-se para melhor submeter a seguir. Os fatos reduzem-se a exemplos e provas enquanto a teoria se reduz a um esquema formal ou, como se costuma dizer, a um modelo. Dando ao real o estatuto de mero exemplo empírico e à teoria o papel de arcabouço vazio para conteúdos variáveis, o pensamento autoritário livra-se da exigência perturbadora de defrontar-se com o que ainda não foi pensado (o real posto aqui e agora) e de compreender o trabalho de uma teoria onde forma e conteúdo não se separam, pois trata-se nela de tornar inteligível a opacidade de uma experiência nova e ainda não conceituada” (Chauí, 1978: 37-38).
Compreende-se bem que Oliveira Vianna tenha exercido certa atração sobre os elementos que hoje se dedicam à mesma tarefa. O seu “pseudonacionalismo” e o seu “pseudopopulismo”, apresentados sob uma aparência científica, têm, no entanto conduzido a muitos equívocos, como o de, por exemplo, operar: “como arsenal de argumentos e armas ideológicas das forças reacionárias, autoritárias e anti-nacionais; ela está dedicada à apologia das classes dominantes e ao combate à democracia, à justificação do racismo e da exploração imperialista. Uma ‘redescoberta’ de O. Vianna pelas esquerdas só pode ocorrer, portanto, pelo absurdo, ou seja, pelo pinçamento de algumas idéias que, retiradas do seu contexto e isoladas de suas conexões, deixam de ter algo a ver com o referido autor. A aparência nacionalista e populista de seus escritos precisa, por isso, ser analisada dentro do conjunto da obra” (Paiva, 1978:128-129).
De fato, um traço negativo, obscuro, na obra de Oliveira Vianna é o preconceito racial. A força e o perigo dos preconceitos se explicam, entre outros, pelo fato de terem sempre oculto dentro de si algo do passado. Examinando com atenção, percebemos que um preconceito genuíno sempre esconde algum juízo anteriormente formado que em sua origem teve uma base apropriada e legítima na experiência e evoluiu como preconceito por ter sido arrastado ao longo do tempo sem ter sido reexaminado ou revisto. Nesse aspecto, expressar um preconceito é coisa bem diferente de um palpite. Este não vai além do âmbito da conversa, como vemos na perspectiva de hermenêutica de Gadamer, “onde as opiniões e juízos mais heterogêneos são jogados de um lado para outro como fragmentos de vidro em um caleidoscópio”. O perigo do preconceito é o fato de sempre estar ancorado no passado como memória – tão notavelmente bem ancorado, muitas vezes, que não só antecipa e bloqueia o juízo, mas também torna impossíveis tanto o próprio quanto a autêntica experiência do presente. Para dissipar os preconceitos, devemos primeiramente descobrir dentro deles os juízos passados, ou seja, “desvelar a verdade que possam conter”. Do contrário, batalhões de oradores ilustrados e bibliotecas inteiras não servem para nada, como deixam cristalinamente claro os esforços infindáveis e infindavelmente infrutíferos para resolver questões carregadas de antigos preconceitos, como os problemas dos judeus ou dos negros nos Estados Unidos, ou das mulheres espancadas ou assassinadas no estado do Ceará, para ficarmos nestes exemplos.
Em assim sendo, dado que o preconceito se antecipa ao juízo recorrendo ao passado, sua justificação temporal se limita aos períodos da história – em termos quantitativos a maior parte dela – em que o novo é relativamente raro e o velho predomina no tecido político e social. Em nossa utilização geral, afirma Hannah Arendt, a palavra “juízo” tem dois significados que se devem distinguir com clareza, mas que se confundem sempre que falamos. Juízo significa, primeiramente, “organização e subsunção do individual e particular  ao geral e universal, procedendo-se então a uma avaliação ordenada com a aplicação de parâmetros pelos quais se identifica o concreto e de acordo com decisões”. Esse juízo que não conhece parâmetro só pode recorrer à evidência do que está sendo julgado, e seu único pré-requisito é a faculdade de julgar, o que tem muito mais a ver com a capacidade de discernir do que com a capacidade de organizar e subordinar. Tais juízos sem parâmetros nos são bastante familiares quando se trata de questões de estética e gosto, que, como observou Immanuel Kant, não se podem “discutir”, mas de que se pode, seguramente, discordar e concordar. Na nossa vida cotidiana isso se verifica sempre que dizemos, em face de uma situação desconhecida, que fulano ou beltrano “fez um juízo correto ou equivocado” (Arendt, 2009: 154-155).
No sentido histórico, “a raça brasileira e, de um modo geral, a sul-americana, tem um sentido cósmico originado das fontes étnicas. Essa origem próxima da Terra apresenta-nos como uma transposição de planos históricos, transladando as eras primitivas para o século da Máquina. A idade da pedra convive com a idade do rádio. O luxo moderníssimo de Copacabana é contemporâneo das malocas e tabas selvagens” (Chauí, 1978: 40-41).  E, no sentido ideológico, Oliveira Vianna desprezando as teses desenvolvidas pela antropologia social contemporânea como entendemos no ensaio Uma História da Antropologia (cf. Leaf, 1981), não teve clara compreensão da formação do processo histórico-social brasileiro e a relação entre classes sociais no Brasil. Nega a existência da luta de classes (inconsciente), enquanto a leitura de seus textos a confirma (consciente). Seu racismo é um racismo de colonização; é um racismo de desprezo pelo povo, de apologia às elites políticas. Acaba jogando água para o moinho do autoritarismo/totalitarismo de corte fascista em voga em época marcada pela sedução da direita ultra-conservadora.

Bibliografia geral consultada:

ZIZEK, Slavoj, A Visão em Paralaxe. São Paulo: Boitempo, 2008; VIANNA, F. J. de Oliveira, Pequenos Estudos de Psicologia Social. São Paulo: Ed. Revista do Brasil, 1921; Idem, Problemas de Política Objectiva. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1930; Idem, Raça e Assimilação. 2a edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1934; Idem, Evolução do Povo Brasileiro. 3a edição. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1938; Idem, Instituições Políticas Brasileiras. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1949, 2 volumes; Idem, Populações Meridionais do Brasil. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1952; COMBLIN, Pe. Joseph, “The National Security Doctrine”. In: The Repressive State: the Brazilian national security doctrine and Latin America. Toronto: LARU, 1976; RIZZO, Sérgio, “O país que não lê: o desprezo pela leitura assume dimensões de doença crônica nacional”. In: Educação. São Paulo, v. 25, n° 207, jul., 1998; CHAUÍ, Marilena de Souza, “Apontamentos para uma crítica da Ação Integralista Brasileira”. In: Marilena Chauí e Maria Sylvia Carvalho Franco, Ideologia e Mobilização Popular.  Rio de Janeiro: Paz e Terra; Centro de Estudos e Cultura Contemporânea, 1978; Astrojildo Pereira, Crítica Impura. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, 1963; Nelson Werneck Sodré, A ideologia do colonialismo. Rio de Janeiro: ISEB – Instituto Superior de Estudos Brasileiros, 1961; BRESCIANI, M. S. Martins, “A Concepção de Estado em Oliveira Vianna”. In: Revista de História, n° 94. São Paulo, abril/junho de 1973; PAIVA, Vanilda, “Oliveira Vianna: Nacionalismo ou Racismo?”. In: Encontros com a Civilização Brasileira. Rio de Janeiro: Editora Civilização Brasileira, n˚ 3, setembro de 1978; CERQUEIRA FILHO, Gisálio, A ‘Questão Social’ no Brasil: Crítica do Discurso Político. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1982 (Tese de Doutorado); IGLÉSIAS, Francisco, Trajetória política do Brasil – 1500-1964. São Paulo: Companhia das Letras, 2000; GRAMSCI, Antonio, Conceito de nacional-popular. Teoria. Obras Escolhidas. Vol. II. Lisboa: Editorial Estampa, 1974; Idem, Gli intellettuali e l`organizazione della cultura. Torino: Ed. Einaudi, 1975; GOLDENBERG, Mirian, Infiel – Notas de uma Antropóloga. Rio de Janeiro: Record, 2006;  Idem, Ser Homem, Ser Mulher: Dentro e Fora do Casamento. Rio de Janeiro: Revan, 1991; Idem, “O macho em crise: um tema em debate dentro e fora da academia”. In: Os Novos Desejos. Rio de Janeiro: Record, 2000; GADAMER, Hans-Georg, Wahrheit und Methode: Grundzüge einer philosophischen Hermeneutik.Tübingen, Mohr, 1960; ARENDT, Hannah, A Dignidade da Política. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.


* Sociólogo (UFF), Cientista Político (UFRJ), Doutor em Ciências (ECA/USP). Professor da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (uece).