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Marcas de Batom (parte II)*

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Frei Betto**

Feminismo no Brasil

Muitas mulheres brasileiras participaram ativamente da resistência à ditadura militar. Mas o primeiro grupo organizado de feministas pós-Simone de Beauvoir surgiu em São Paulo, em 1972, com Célia Sampaio, Walnice Nogueira Galvão, Betty Mindlin, Maria Malta Campos, Maria Odila Silva Dias e, mais tarde, Marta Suplicy.

Aos poucos, o tema do feminino e do feminismo passou a ocupar fóruns nacionais de debate, como ocorreu na reunião anual da Sociedade Brasileira pelo Progresso da Ciência (SBPC), em Belo Horizonte, em 1975. No mesmo ano, um encontro na Associação Brasileira de Imprensa (ABI), no Rio, deu origem ao Centro da Mulher Brasileira. Também no mesmo ano, em São Paulo, realizou-se o Encontro para o Diagnóstico da Mulher Paulista; surgiu o Movimento Feminino pela Anistia, liderado por Terezinha Zerbine; e foi lançado o jornal Brasil Mulher, que circulou de 1975 a março de 1980.

A imprensa feminista ganhou fôlego. Nós Mulheres circulou entre 1976 e 1978, e o jornal Mulherio, lançado em março de 1981, tornou-se leitura obrigatória das feministas por mais de cinco anos.

Entre 1970 e 1980, o movimento de mulheres centrou-se na luta pela redemocratização do país. Nas classes populares surgiram, incentivados pela Igreja Católica, clubes de mães e associações das donas de casa. Outros movimentos, sem vínculos confessionais ou partidários, brotaram pelo país afora, como a Rede Mulher, em defesa dos direitos da mulher e da ampliação da cidadania feminina. Aos poucos, delinearam-se agendas específicas, como negras, prostitutas, lésbicas, trabalhadoras rurais e urbanas, empresárias etc.

Mais de 3000 mulheres reuniram-se nos Congressos da Mulher Paulista, entre 1979 e 1981. No Rio, o 8 de março foi comemorado por encontros estaduais, de 1977 a meados da década de 1980. Em Fortaleza, em 1979, houve o I Encontro Nacional Feminista.

Feminismo sindical

Na área sindical, desde 1963 as trabalhadoras brasileiras lutam por seus direitos, pois naquele ano 415 delegadas participaram do encontro organizado pelo Pacto de Unidade Intersindical. O golpe militar de 1964 abortou esse movimento, que só veio a ressurgir em meados dos anos 1970.

Em 1979 ocorreram dois Encontros da Mulher Metalúrgica, um em São Bernardo do Campo-SP e outro na capital paulista. Elas participaram ativamente das greves de 1980, promovendo piquetes, angariando recursos ara o fundo de greve e ocupando as ruas de São Bernardo do Campo, ostentando flores contras os fuzis da ditadura.

Suas reivindicações específicas foram incorporadas às pautas de negociação. Bem como denunciados seus salários mais baixos e falta de creches. As trabalhadoras queriam também jornada de quarenta horas semanais e abono de faltas ou atrasos causados pela necessidade de levar os filhos ao médico.

No I Conclat (Congresso das Classes Trabalhadoras), em 1981, a voz feminina se fez ouvir, sobretudo com as demandas das empregadas domésticas pelo reconhecimento da profissão e a extensão dos direitos trabalhistas à sua categoria.

As trabalhadoras rurais despontaram a partir de 1979, após a greve dos 100 000 trabalhadores rurais na Zona da Mata de Pernambuco. Elas começaram a se organizar em movimentos de mulheres, sindicatos e associações, lutando contra a exploração da mão-de-obra no campo. O Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra (MST) ajudou a impulsionar essa luta, combatendo, em sua organização e campanhas, todas as formas de discriminação à mulher.

Em 1990, realizaram-se o Seminário Nacional das Trabalhadoras Rurais e o 1º Congresso do Departamento Nacional dos Trabalhadores Rurais da Central Única dos Trabalhadores (CUT).

Entre 1985 e 1990, as mulheres negras começam a dar visibilidade nacional às suas lutas. Em 1987, no VIII Encontro Nacional Feminista, em Garanhuns-PE, decidiu-se organizar, no ano seguinte, o 1º Encontro Nacional de Mulheres Negras, realizado em Valença-RJ, onde se reuniram 440 mulheres de 19 Estados.

As mulheres lésbicas também começaram a se organizar para reagir ao preconceito e à violência. Formaram grupos de auto-estima, denúncias e ação política. Em 1979, surgiu em São Paulo a associação SOMOS Grupo de Afirmação Homossexual, da qual brotaram o Grupo Lésbico Feminista e o Grupo da Ação Lésbico-Feminista. Em 1999, o Rio abrigou o 5º Encontro de Lésbicas Feministas da América Latina e do Caribe.

Cada vez mais, ganhou espaço na mídia a violência contra as mulheres, sobretudo assassinatos cometidos por seus companheiros. Repercutiram nacionalmente as mortes de Ângela Diniz (RJ), Maria Regina Rocha e Eloísa Balesteros (MG) e Eliane de Gramont (SP). “Quem ama não mata”, o refrão ressoou pelo Brasil inteiro, a ponto de inspirar uma minissérie da TV Globo.

A 10 de outubro de 1980, foi criado em São Paulo o primeiro grupo de combate à violência contra a mulher, o SOS Mulher. Daí surgiram as delegacias de polícia especializadas. Inaugurou-se a primeira em São Paulo, 1985. Em 1990, já eram mais de duzentas em todo país.

Participação política

As eleições diretas para governadores, em 1982, mobilizaram as feministas em defesa da cidadania e pela implementação de políticas públicas para as mulheres. A vitória do PMDB, em 1983, em Minas e São Paulo levou à criação dos primeiros Conselhos Estaduais da Condição Feminina. Pressionado pelos movimentos de mulheres, o presidente Sarney propôs ao Congresso a criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM), aprovado em 1985. Vinculado ao Ministério da Justiça, exerceu positiva atuação na Constituinte de 1988. Mas em 1989 o presidente Collor acabou com a autonomia financeira e administrativa do órgão, que passou a depender da boa vontade do Ministério da Justiça.

Na ECO 1992, no Rio, as mulheres participaram do Fórum das ONGs com o planeta fêmea, do qual saiu a Agenda 21 das Mulheres. Seguiram-se as conferências sobre Direitos Humanos (Viena, 1993) e sobre População e Desenvolvimento (Cairo, 1994), que trataram de temas específicos da agenda feminista. Esse processo resultou na realização da IV Conferência Mundial da Mulher, em Pequim, em 1995.

Vários países já foram e são governados por mulheres. Helen Clark foi chefe de governo (primeira-ministra) da Nova Zelândia de 1999 a 2008. Gloria Arroyo presidiu as Filipinas de 2001 a junho de 2010. Chandrika Kumaratunga presidiu o Sri-Lanka de 1994 a 2005. Tarja Halonen é presidente da Finlândia desde 2000. Mary McAleese é presidente da Irlanda desde 1997. Vaira Vike-Freiberga foi primeira-ministra da Letônia entre 1999 e 2007. Mireya Moscoso foi presidente do Panamá de 1999 a 2004. Hasina Wazed é chefe de governo de Bangladesh desde 1996. Megawati Sukarnoputri foi presidente da Indonésia entre 2001 e 2004. No Chile, Michelle Bachelet presidiu o país de 2006 até março deste ano de 2010. Hoje, na Alemanha, Angela Merkel é a chanceler do governo desde 2005; na Argentina, Cristina Kirchner governa o país desde 2007; e no Brasil, Dilma Roussef do PT é a presidente eleita para os próximos 4 anos de governo.***

Desafios

A partir de 1977, o movimento feminista fragmentou-se em diversas tendências, algumas mais voltadas para a discriminalização do aborto, outras centradas na isonomia profissional com os homens. Muitas mulheres, após conquistar postos de trabalho antes ocupados exclusivamente pelos homens, lograram também assumir funções políticas de mando.

A crise da família faz com que muitas exerçam o papel de chefe de família, como ocorre, hoje, com 30 por cento das mulheres latino-americanas, sobretudo as mais pobres.

Há, contudo, um terreno diante do qual o feminismo parece calar-se: o uso da mulher na publicidade e, em especial, no mundo da moda. A mulher é flagrantemente utilizada como isca de consumo, realçando-se seus atributos físicos de modo a reificá-la, ou seja, estabelecer uma relação direta entre o produto e a mulher, alvos do desejo libidinoso. Na esfera da moda, ela é condenada à anorexia, favorecendo uma nova exclusão sociocultural: a das gordas e feias, idosas e maltratadas pela carência.

Essa mulher-objeto, fruto da manipulação estética de academias de ginástica, produtos dietéticos e medicina especializada, é desprovida de sentimentos, ideias, valores e projetos. Vale unicamente pelo aspecto físico.  Saber requebrar na dança é mais importante do que saber pensar, e a ausência de gorduras e celulites importa mais que as qualidades morais e intelectuais.

Nos programas de televisão, sobretudo humorísticos, o papel da mulher é quase sempre o de notória imbecil, reforçando o machismo e favorecendo a violência contra ela, seja a física, seja a moral, mais comum, do homem que se recusa ao diálogo, não admite críticas e sente-se no direito de ditar normas de comportamento.

O que é espantoso é a cumplicidade de tantas mulheres com essa imagem que as deprecia e alarga a distância entre ética e estética, amor e sexualidade, subjetividade e glamourização dos atributos físicos.

A marca do batom é vermelha, cor das bandeiras libertárias e, também, do sangue injustamente derramado pela opressão.

* Este texto de Frei Betto, reproduzido aqui, é a segunda parte de um artigo intitulado “Marcas de Batom”, o qual foi publicado originalmente na revista Caros Amigos, ano V, nº54, setembro de 2001, p. 16-17.

**Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, é da ordem católica dos Dominicanos, escritor e assessor de movimentos sociais; é autor de livros como Batismo de Sangue, Hotel Brasil, Típicos Tipos, entre outros; e foi assessor especial da Presidência da República no governo Lula (2003-2004).

***O referido parágrafo foi atualizado pelo editor.

Marcas de Batom (parte I)*

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Frei Betto**

Tome-se uma mulher. A meu ver, nada mais belo em toda a natureza. E completo, pois é portadora de vida, enquanto o homem é apenas provedor. Matrimônio, vínculo que assegura a unidade familiar, promovido por Jesus a um dos setes sacramentos. Patrimônio, a posse dos bens que sustentam a família.

Ninguém sofre uma opressão tão prolongada ao longo da história como a mulher. Mutiladas em países da África com a supressão do clitóris, censuradas em países islâmicos onde são proibidas de exibir o rosto, subjugadas como escravas e prostitutas em regiões da Ásia, deploradas como filha única por famílias chinesas, são as mulheres que carregam o maior peso da pobreza que atinge, hoje, 4 dos 6 bilhões de habitantes da terra.

Metade da humanidade é mulher. A outra metade, filhos de mulheres. Em muitos países, elas são obrigadas a suportar dupla jornada de trabalho, a doméstica e a profissional, arcando ainda com o cuidado e a educação das crianças. Na América Latina, entre a população pobre, 30 por cento dos chefes de família são mulheres.

Estupradas em sua dignidade, elas são despidas em outdoors e capas de revistas, reduzidas a isca de consumo na propaganda televisiva, ridicularizadas em programas humorísticos, condenadas à anorexia e à beleza compulsória pela ditadura da moda. As belas e burras têm mais “valor de mercado” do que as feias e inteligentes.

Feminismo

O movimento feminista organizado surgiu nos EUA, na segunda metade dos anos 1960. Logo, expandiu-se pelo países do Ocidente, propugnando a libertação da mulher, e não apenas a emancipação. Qual a diferença? Emancipar-se é equiparar-se ao homem em direitos jurídicos, políticos e econômicos. Corresponde à busca de igualdade. Libertar-se é querer ir mais adiante, marcar a diferença, realçar as condições que regem a alteridade nas relações de gênero, de modo a afirmar a mulher como indivíduo autônomo, independente, dotado de plenitude humana e tão sujeito frente ao homem quanto o homem frente à mulher.

É esse o objetivo numa sociedade que ainda mantém a mulher como uma pessoa oprimida, estrutural e superestruturalmente. Não se rompe esse cativeiro apenas com mudanças jurídicas na sociedade neoliberal. Nem com a isonomia econômica do socialismo, como queriam Marx, Engels, Bebel e Clara Zetkin.

Bebel escreveu, em 1889, O Socialismo e a Mulher, no qual concordava com a tese de Engels de que a sociedade retrocedera de um período mítico, matriarcal e feliz, para um período patriarcal, fundado na propriedade privada. Julgou, portanto, que a abolição da propriedade privada significaria a libertação da mulher, no que se equivocou.

Não é por acaso que a maior organização de massa de Cuba é a Federação das Mulheres, com 3 milhões de filiadas, numa população de 11 milhões de habitantes. O socialismo no Leste europeu comprovou que não se liberta a mulher abolindo a propriedade privada e introduzindo-a no processo produtivo. É preciso mudar também a superestrutura cultural e psicológica da sociedade e, sobretudo, reinventar formas de produção e de exercício de poder que tenham as mulheres como sujeito. Enquanto o masculino for o paradigma do feminino, esse ideal não será alcançado, a menos que as mulheres descubram que elas próprias são o paradigma de si mesmas.

Reação histórica

No Renascimento ouviam-se os ecos medievalistas que consideravam a mulher um ser inferior ao homem. Bispos e teólogos defenderam que a mulher é “naturalmente” inferior ao homem, destinada a obedecer-lhe. Por isso, não podia exercer funções de poder, como o sacerdócio.

Questionado se o escravo liberto poderia ser sacerdote, São Tomás de Aquino, meu confrade, respondeu que sim, pois o escravo é “socialmente inferior”, enquanto a mulher é “naturalmente inferior”.

O humanista Cornélio Agrippa reagiu em 1529, proclamando a superioridade da mulher na obra De Nobilitate et Praecellentia Feminae Sexus (Da Nobreza e Excelência do Sexo Feminino).

Na Itália do século XVII, três intelectuais de Veneza despontaram como precursoras do feminismo: Lucrécia Marinelli, Moderata Fonte e Arcângela Tarabotti. A primeira escreveu, em 1601, La Nobilità e l’Eccelenza delle Donne (A Nobreza e a Excelência da Mulher), onde defendeu a igualdade fundamental dos dois sexos, ressaltando o papel da mulher na história da civilização.

Moderata Fonte publicou, em 1600, Merito delle Donne (Valor da Mulher), em que retratou as donas de casa de sua época, que viviam “como animais encurralados entre paredes”, dizia uma personagem desiludida com o casamento, em que a sonhada liberdade se evaporara para dar lugar a “um odioso guardião”. Desprovida de recursos e instrução, a mulher sujeitava-se ao poder masculino.

Arcângela Tarabotti foi obrigada pelo pai, em 1620, aos 16 anos, ao ingressar no mosteiro da Santa Ana, das beneditinas, onde morreu em 1652. Ao longo de 32 anos, escreveu textos e cartas em seu “cárcere feminino”, como qualificava o mosteiro, denunciando a inferioridade da mulher. Em suas obras Antisatira (Anti-sátira), Difesa delle Donne contro Horatio Plata (Defesa da Mulher contra Horácio Plata) e La Tirannia Paterna (A Tirania Paterna), esta publicada em 1654, Arcângela Tarabotti denunciou os falsos moralismos masculinos, a falta de liberdade feminina e a violência que a obrigou a trocar a pena da escritora pela agulha da bordadeira.

Iluminismo

O projeto iluminista de melhorar o ser humano através da cultura favoreceu, no século XVIII, o acesso da mulher à escola. Em Pádua, na Itália,, em 1723, discutia-se “se as mulheres devem ser admitidas no estudo das ciências e das artes nobres”. Aos poucos, as portas da instrução se abriram a elas.

A Revolução Francesa é considerada, por muitos, o berço do feminismo moderno. Em 1791, Olímpia de Gouges lançou a Declaração dos Direitos da Mulher e da Cidadã, onde proclamou que a mulher possui direitos naturais como o homem, e deve participar do poder legislativo. A obra incluía um “contrato social” entre os sexos. De Gouges, entretanto, morreu guilhotinada em 1793 e, no mesmo ano, o parlamento rejeitou a proposta de igualdade política entre os sexos. Só no século XX a francesa teve direito ao voto.

Ao crepúsculo do século XIX, o feminismo despontou na Inglaterra como movimento de emancipação, reivindicando igualdade jurídica, como direito ao voto e acesso à instrução e às profissões liberais. A sociedade se vangloriava de ser liberal, mas sujeitava mulher, privando-a dos direitos de cidadania.

John Stuart Mill escreveu em 1869, na obra Sobre a Sujeição da Mulher, que considerá-la um ser incapaz é marcá-la desde o nascimento com a autoridade da lei, decretando que jamais ela poderá aspirar a alcançar determinadas posições. Mill concordava com Fourier que o melhor modo de avaliar o grau de civilização de um povo é analisando a situação da mulher. Defendia, ainda, o fim da desigualdade de direitos na família; a admissão de mulheres em todas as funções; participações nas eleições; e melhor instrução.

A reforma eleitoral italiana de 1912 estendeu o direito ao voto aos analfabetos, mas excluiu as mulheres, os menores, os prisioneiros e os dementes. Só em 1945 as italianas tiveram direito ao voto, após duas guerras mundiais.

O novo feminismo

Simone de Beauvoir, ao publicar em 1949 O Segundo Sexo, pôs a descoberto as profundas raízes da opressão feminina, analisando o desenvolvimento psicológico da mulher e as condições sociais que a tornam alienada e submissa ao homem.

Em 1963, Betty Fridman lançou nos EUA A mística Feminina, onde retomou as ideias de Beauvoir, denunciando a opressão da mulher, que, na sociedade industrial, sofre do “mal que não tem nome” – a angústia do eterno feminino, da mulher sedutora e submissa.

A partir dessas novas ideias, o movimento feminista alastrou-se pelo mundo. Sutiãs foram queimados nas ruas; a libertação sexual tornou-se um fato político; as palavras de ordem se multiplicaram: “Nosso corpo nos pertence!”; “Direito ao prazer!”; “O privado também é político!”; “Diferentes , mas não desiguais!”.

O modelo tradicional do ser mulher entrou em crise e um novo perfil feminino começou a se esboçar.

Pressionada, a ONU declarou 1975 Ano Internacional da Mulher, e a década que se seguiu, até 1985, Década da Mulher em todo o mundo.

* Este texto de Frei Betto, reproduzido aqui, é a primeira parte de um artigo intitulado “Marcas de Batom”, o qual foi publicado originalmente na revista Caros Amigos, ano V, nº54, setembro de 2001, p. 16-17.

**Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto, é da ordem católica dos Dominicanos, escritor e assessor de movimentos sociais; é autor de livros como Batismo de Sangue, Hotel Brasil, Típicos Tipos, entre outros; e foi assessor especial da Presidência da República no governo Lula (2003-2004).

O Palhaço Tiririca & Analfabetismo Político Brasileiro

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Ubiracy de Souza Braga*

Francisco Everardo Oliveira Silva foi candidato a deputado federal pelo PR nas eleições deste ano com seu nome de trabalho: Tiririca. O humorista cearense, de Itapipoca, foi um dos maiores fenômenos da primeira semana de propaganda eleitoral no rádio e na televisão, tendo sido eleito com 1.300 milhões de votos. Tiririca, que ficou consagrado no Brasil com a música “Florentina” e com participações em programas de grandes emissoras de TV, reflete mais uma vez a tendência da migração de artistas para cargos eletivos, aproveitando a popularidade adquirida na carreira. Um exemplo disso deu-se, entre outros, com o estilista e apresentador de TV, Clodovil, eleito deputado federal em 2006 com aproximadamente 500 mil votos, à época, a terceira maior votação entre os postulantes à vaga.

Nas eleições de 2010, o humorista cearense teve como adversários os ex-jogadores de futebol Romário e Marcelinho Carioca, o que não é pouco em termos de popularidade. Mas, até agora, o fenômeno da propaganda eleitoral tem sido mesmo Tiririca, que apoiou Aloísio Mercadante, candidato pelo PT ao Governo do São Paulo. Este apoio, inclusive, “tem gerado uma pequena crise entre petistas e republicanos”. Faz parte da linha assumida pelo cearense um tom de sarcasmo e deboche sobre o Congresso nacional e o cargo de deputado federal, como por exemplo: “Vote no Tiririca, pior do que tá não fica!”; “Você está cansado de quem trambica? Vote no Tiririca”; “Para deputado federal. Tiririca. Vote no abestado”, entre outros. A denúncia para tornar o candidato Tiririca inelegível partiu da revista Época, associada da rede Globo de Televisão, que divulgou que “o humorista não saberia ler nem escrever”, o que configuraria caso de inelegibilidade dos analfabetos expressa na Constituição de 1988 que dispõe que o alistamento eleitoral e o voto são facultativos para os analfabetos, mas estabelece o analfabetismo como um dos critérios prevalentes para a inelegibilidade. Dois pesos e duas medidas: o analfabeto é obrigado a votar, mas não pode ser votado.

Não estamos longe de admitir, mal comparando, a analogia feita pelo esteta Bertold Brecht, que fora um destacado dramaturgo, poeta e encenador alemão do século XX. Seus trabalhos artísticos e teóricos influenciaram profundamente o teatro contemporâneo, tornando-o mundialmente conhecido a partir das apresentações de sua companhia o Berliner Ensemble realizadas em Paris durante os anos 1954 e 1955. Ao final dos anos 1920 Brecht torna-se marxista, vivendo o intenso período das mobilizações da República de Weimar, desenvolvendo o seu teatro épico. Sua praxis é uma síntese dos experimentos teatrais de Erwin Piscator e Vsevolod Emilevitch Meyerhold, do conceito de “estranhamento” do formalista russo Viktor Chklovski, do teatro chinês e do teatro experimental da Rússia soviética, entre os anos 1917-1926. Seu trabalho como artista concentrou-se na crítica artística ao desenvolvimento das relações humanas no sistema capitalista.

Em seus versos sobre o analfabeto político, este sim, em sua incompletude no fazer política, ele afirma: “O pior analfabeto é o analfabeto político/ Ele não ouve, não fala, nem participa dos acontecimentos políticos/ Ele não sabe que o custo de vida, o preço do feijão,/ do peixe, da farinha, do aluguel, do sapato e do remédio dependem das decisões políticas./ O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política./ Não sabe o imbecil que da sua ignorância política nasce a prostituta,/o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos que é o político vigarista, pilantra, o corrupto e lacaio dos exploradores do povo./ Nada é impossível de Mudar/Desconfiai do mais trivial, na aparência singelo/ E examinai, sobretudo, o que parece habitual./ Suplicamos expressamente: não aceiteis o que é de hábito como coisa natural, pois em tempo de desordem sangrenta,/ de confusão organizada, de arbitrariedade consciente,/ de humanidade desumanizada, nada deve parecer natural nada deve parecer impossível de mudar./ Privatizado/Privatizaram sua vida, seu trabalho, sua hora de amar e seu direito de pensar./É da empresa privada o seu passo em frente,/seu pão e seu salário. E agora não contente querem privatizar o conhecimento,/ a sabedoria, o pensamento, que só à humanidade pertence”.

O humorista Ciro Botelho, redator do programa Pânico da rádio Jovem Pan, diz que escreveu sozinho o livro As piadas fantárdigas do Tiririca em 2006. A publicação é assinada só por Tiririca. Botelho diz que escreveu com base em histórias contadas por ele. “O Tiririca não sabe ler nem escrever”, afirma. Dois funcionários da TV Record também disseram a Época que nos bastidores do programa humorístico Show do Tom, do qual Tiririca participa, é sabido “que ele não lê nem escreve”. De acordo com Ciro Botelho, o palhaço conta com a ajuda da mulher para decorar suas falas: “A mulher fica no camarim com ele e vai falando o texto. Ele vai decorando e conta do jeito dele”.

A reportagem de Época acompanhou Tiririca por dois dias na semana passada. Viu o candidato dar autógrafos com uma grafia bem diferente da que aparece na declaração apresentada ao TRE, com letras redondas. Aos fãs, ele assina um rabisco circular ininteligível e desenha o que seriam as letras do nome de seu personagem. Em duas ocasiões, a reportagem deparou também com situações que demonstram que Tiririca tem, no mínimo, enorme dificuldade de leitura. No dia 21, a reportagem pediu para Tiririca ler uma mensagem de celular. Ele ficou visivelmente assustado diante do aparelho. O constrangimento do candidato só foi desfeito quando uma assessora leu o torpedo em voz alta. Minutos antes, referindo-se às críticas feitas a sua candidatura nos jornais, Tiririca dissera: “Eu não leio nada, mas minha mulher lê para mim”.

Tendo em vista matéria da Época sobre eventual falta de condição de elegibilidade (analfabetismo) do candidato a deputado federal por São Paulo, Francisco Everardo Oliveira Silva, conhecido como Tiririca, “a Procuradoria Regional Eleitoral em São Paulo esclarece que o procedimento de registro do candidato transitou em julgado em 19 de agosto e, por isso, não há possibilidade de impugnação ou desconstituição de sua candidatura neste momento”, diz a nota. Contudo, a Procuradoria Regional Eleitoral está investigando o caso e vai pedir o registro de candidatura ao Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo – TRE-SP, para examinar o que foi apresentado pelo candidato em relação à escolaridade. De acordo com a nota, se eleito e comprovado eventual irregularidade na documentação apresentada, há a possibilidade de recurso por inelegibilidade constitucional.

No dia 1º do mês passado, o promotor apresentou à Justiça o pedido de cassação do registro de Tiririca sob a acusação de “falsidade documental ideológica”. Também embasam a defesa de Tiririca laudos e pareceres de fonoaudiólogos e psicólogos. As opiniões dos especialistas contratados pela defesa analisam suposta dificuldade de dicção dele – e seus reflexos -, além de tratar sobre as consequências que a origem familiar teve em sua formação educacional. Além disso, o objeto do ofício da Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo à Justiça Eleitoral não é este, mas “a possível ocultação proposital de seus bens pessoais à Justiça”. O Ministério Público Eleitoral se baseou em nota publicada na coluna “Radar”, da revista “Veja”, que informou que o humorista declarou ao TSE não possuir nenhum bem, pois teria colocado todo o seu patrimônio em nome de terceiros, depois de responder a processos trabalhistas e de sua ex-mulher.

Não devemos perder de vista que o Estado – aqui representado pela Procuradoria Regional Eleitoral de São Paulo –, é visto menos como uma prática política que “produz efeitos de poder político”, no sentido foucaultiano do termo, e mais como um lugar que possui autonomia relativa diante da sociedade civil. Temos convicção que o Estado é, sobretudo, um conjunto de modos de impor certas decisões a certas coletividades, e é também um conjunto de práticas de pensamento. Em verdade, estamos frisando nossa discordância da ênfase atribuída ao Estado, e mesmo da particularidade das análises que propõe autonomia ao Estado, enquanto “sujeito histórico” na luta de classes, que é uma decorrência mais de instrumentação teórica. Assim, é imprescindível ao analista social considerar a análise histórica sobre a questão social desenvolvida no livro de Gisálio Cerqueira Filho, A Questão Social no Brasil – Crítica do Discurso Político, porque trata da crítica do discurso político sobre a questão social no interior de um pensamento e uma prática política essencialmente autoritária (cf. Cerqueira Filho, 1982).

Curiosamente na pesquisa empírica em jornais notei a ênfase que foi dada ao humorista como palhaço, ora o artista que o interpreta, ora o homem que sem ser palhaço, torna-se para os mass mídia que incrivelmente satanizam quaisquer pessoa como “capital da notícia”. Será que esses jornalistas se masturbam e gozam quando satanizam ou detêm determinadas pessoas em sua “alça de mira”?  É algo que, para o jovem sociólogo que deseja ir ao âmago da vida social, ao lugar das relações e dos conflitos deveria verificar, pois são e continuam sendo os que trazem ao conhecimento o que lhe é mais indispensável. Sem a sua presença, como jovens pesquisadores, acreditamos, há sempre o perigo de cedermos às tentações de grupos de intelectuais no poder, em suas formas aparentemente investigativas como Laboratórios, onde simplificadamente estudam os efeitos de poder político prestando contas públicas através dos aparelhos de Estado que os financiam. Que loucura!

Bibliografia Geral Consultada

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*Sociólogo (UFF), cientista político (UFRJ), doutor em ciências junto à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Professor da Coordenação do curso de Ciências Sociais da Universidade Estadual do Ceará (UECE).