Vendo estas Minas tão mofinas, quem diria, desatinado, escarmentado, somos o povo destinado? Somos os o tíbio povo dos heróis assinalados. Eles aí estão, há séculos, a nos cobrar amor à liberdade. Filipe grita, Joaquim José responde:

Libertas quae sera tamen!

– Liberdade, aqui e agora. Já!

[…]. O destino caiu, corou desta vez a cabeça de Joaquim José, condenado pela Rainha Louca a morrer morte natural na forca, ser esquartejado e exposto para escarmento do povo. Despedaçado, lá ficaram suas partes apodrecendo, até que o tempo as consuma como queria Dona Maria. Os quatro quartos plantados fedendo, na Estrada Real. A cabeça com a cabeleira e a barba, bastas, alçadas num poste alto, em Ouro Preto, guardada por famintos urubus asas de ferro, bicos agudos: tenazes. Estes foram, só eles, seus coveiros. Acabado assim tão acabado, sem ao menos a caridade da cal virgem, Tiradentes não se acabou nem se acaba. Prossegue em nós, latejando. Pelos séculos continuará clamando na carne dos netos de nossos netos, cobrando de cada qual sua dignidade, seu amor à liberdade.

As barbas. As barbas. As barbas.

Aqui permaneceram.

À espera doutra cara e doutra vergonha.

Estes são os nossos heróis assinalados, símbolos de uma grandeza recôndita que havia.     Ainda há, eu quero crer, mais rara que os ouros, por garimpar. Maior que eles dois, porém, é a multidão que vou chamar. Veja:

— Venham, eu os convoco, venham todos. Venham aqui dizer da dor dos nervos dilacerados, do cansaço dos músculos esgotados. Venham todos, com suas tristes caras, com suas murchas ilusões, venham vestidos ou nus, tal como foram enterrados, se foram. Venham morrer aqui de novo suas miúdas mortes inglórias.

Venha primeiro você, você mineiro anônimo que furtou o crânio de Tiradentes, rezou por sua alma e o sepultou. Mas venham todos!

Você os vê? Foram milhões de almas vestidas de corpos mortais, doídos, os que aqui nessas Minas se gastaram. Olhe de novo pra eles, olhe bem. Veja só. No princípio eram principalmente índios nativos e uns poucos brancarrões importados. Depois, principalmente negros, vindos de longe, africanos. Mas logo, logo, veja só: eram já multidões de mestiços, crioulos, daqui mesmo.

Esses milhões de gentes tantas são as mulas desta gueena de lavar cascalhais. Vê você como eles todos nos olham, olhos baixos, temerosos, perguntando calados:

— Quem somos nós? Existimos, para quê? Por quê? Para nada?

Somos o povo dos heróis assinalados, mas somos mesmo é o povo dessas multidões medonhas de gentes, enganadas e gastadas. O povo escarmentado na carne e na alma. Somos o povo que viu e que vê. O povo que vigia e espera.

Trecho do romance “Migo” (1988) de Darcy Ribeiro