Diogo Tourino de Sousa e Fernando Perlatto**

Max Weber escreve, em 1906, o importante “As seitas protestantes e o espírito do capitalismo”, que antecipa, de alguma forma, suas reflexões, posteriormente publicadas, sobre a Sociologia das Religiões. No texto, Weber descreve um batismo protestante por ele presenciado nos EUA, numa viagem feita entre a escrita da primeira e segunda parte de sua obra mais famosa – “A ética protestante e o espírito do capitalismo” – que abriu espaço para pensarmos numa curiosa imagem: uma família protestante, no início do século XX, realizava um ritual de batismo conforme sua crença religiosa, e era assistida por um alemão, de aspecto austero e exibindo uma barba hirsuta.

A família protestante até poderia achar que tratava-se de uma pessoa, digamos, “normal”. No entanto, o espectador era Max Weber, um dos mais influentes clássicos da Sociologia, que esquadrinhava a cena dentro de um sofisticado quadro conceitual, tomando o fato como exemplo para consubstanciar sua tese sobre direcionamento religioso, a singularidade do Ocidente e o desencantamento do mundo.

Todos que começam a estudar a Sociologia logo compartilham, quase instintivamente, desse comportamento, descrito de maneira exemplar pelo sociólogo norte-americano Charles Wright Mills (1916-1962) a partir da ideia de “imaginação sociológica”. Em linhas gerais, é uma forma de pensamento que possibilita aos indivíduos a enxergarem o quadro histórico e social complexo e amplo do qual fazem parte, levando-os a relacionar os seres humanos em suas sociedades, a biografia individual e a história, capacitando-os a entenderem a criminalidade, o analfabetismo, o divórcio e demais fenômenos sociais não como problemas pessoais, mas como questões sociais. Desde que se adquira uma “imaginação sociológica” o mundo se torna permanentemente alvo de interpretações que são capazes, por certo, de perceber tramas maiores imperceptíveis ao olhar mais ligeiro e descuidado.

Uma boa metáfora para entender melhor um comportamento comum de sociólogos é a da “câmera escondida” utilizada pelo jornalismo investigativo e presença constante na denúncia de casos de corrupção e descaso. Prática criticada por muitos profissionais como antiética, pois o jornalista ao esconder a câmera não avisa ao “entrevistado” que ele está sendo gravado, e alvo inclusive de pedidos de indenização em alguns casos, ela continua presente nos noticiários. Quase sempre com o mesmo enredo: o jornalista, a partir de uma denúncia, se passa por uma pessoa qualquer que estaria interessada num serviço, ou mesmo disfarça-se de corruptor, e provoca o transgressor para que ele entregue toda a verdade, sem saber, é claro, que está sendo filmado.

A provocação que sugerimos a partir dessa metáfora, para pensarmos no comportamento padrão dos sociólogos, é a de que esses profissionais carregam uma espécie de “câmera escondida” dentro da cabeça. Tal como no exemplo de Weber, pessoas comuns revelam-se cotidianamente aos sociólogos, supondo conversarem com um interlocutor “normal”. No entanto, ao ouvi-las é inevitável que o que digam ou façam seja sempre enquadrado dentro de quadros conceituais e teóricos que fazem parte já de uma longa tradição de pensamento científico.

A “câmera escondida” presente no fazer dos sociólogos quase sempre é incomunicável ao ouvinte ou interlocutor, pois, por vezes, este não pactua com os mesmos modos de ver e pensar a realidade. No entanto, assim como o jornalista “denuncia” o que filma, a Sociologia é capaz de construir, por meio da leitura da realidade dentro do quadro conceitual e teórico herdado da sua tradição científica, refeito e sempre revisto, afirmativas sobre a sociedade, capazes de elucidar a relação existente entre biografias particulares e a realidade social que as cerca.

* Este texto é um trecho de parte do Caderno de Exercícios 33, intitulado “O papel dos clássicos no discurso sociológico”, da revista Sociologia, edição 40, ano IV, abril/maio de 2012, p. 47 a 49. Eu, Francisco Secundo Neto, autor deste blog, digitei e adaptei algumas poucas passagens desse texto, mas sem prejuízo de sentido final para as ideias nele trabalhadas originalmente por seus autores.

** Diogo Tourino é sociólogo e professor do curso de Ciências Sociais da UFV e Fernando Perlatto é historiador e professor do curso de Ciências Sociais da UFJF.